sexta-feira, 30 de setembro de 2011

OS TERMOS BÍBLICOS PARA CONVERSÃO.

Por Louis Berkhof

1. VOCÁBULOS DO VELHO TESTAMENTO. O Velho Testamento emprega especialmente duas palavras para a conversão, a saber:

a. Nacham, que serve para expressar um profundo sentimento, ou de tristeza (no niphal) ou de alívio (no piel). No niphal significa arrepender-se, e este arrependimento com freqüência é acompanhado por uma mudança de plano ou de ação, ao passo que no piel significa consolar-se. Como um designativo de arrependimento – e é este o sentido que nos interessa aqui – é empregado não somente com referência ao homem, mas também a Deus, Gn 6.6, 7; Ex 32.14; Jz 2.18; 1 Sm 15.11.

b. Shubh, que é a palavra mais comum para conversão, significa volver, voltar-se, virar e retornar. Muitas vezes foi utilizado num sentido literal, tanto com relação a Deus como com relação ao homem, mas logo adquiriu uma significação religiosa e ética. Este sentido é mais proeminente nos profetas, onde se refere ao retorno de Israel ao Senhor, depois de ter-se apartado dele. A palavra mostra claramente que aquilo que o Velho Testamento denomina conversão é uma volta para Deus, de quem o pecado separou o homem. Este é um importante elemento da conversão. Acha expressão nas palavras do filho pródigo; “Levantar-me-ei e irei ter com meu pai”, ou, na versão utilizada pelo Autor: “Voltarei, e irei a meu pai” (Lc 15.18).*

2. VOCÁBULOS DO NOVO TESTAMENTO. Há particularmente três palavras que requerem consideração aqui:

a. Metanoia (forma verbal, metanoeo). Esta é a palavra mais comum para conversão no Novo Testamento, e também é o mais fundamental dos termos empregados. A palavra é composta de meta e nous, que por sua vez é relacionado com o verbo ginosko (latim noscere; português, conhecer), tudo referente à vida consciente do homem. A tradução comum na Bíblia, “arrependimento”, não faz plena justiça ao original, visto que dá indevida proeminência ao elemento emocional. Trench assinala que no grego clássico a palavra significa: (1) conhecer depois, pós-conhecimento; (2) mudar a mente com resultado deste pós-conhecimento; (3) em conseqüência desta mudança da mente, lamentar o curso seguido; e (4) uma mudança da conduta quanto ao futuro, resultante de todos os fatores anteriores. Contudo, podia indicar uma mudança para pior, bem como para melhor, e não incluía necessariamente uma resipiscentia – um voltar a ser sábio. No Novo Testamento, o seu sentido é aprofundado, e denota primariamente uma mudança do entendimento, passando a ter uma visão mais sábia do passado, incluindo o pesar pelo mal praticado e levando a uma mudança da vida para melhor. Aqui o elemento de resipiscentia está presente. Em sua obra sobre O Grande Significado de Metanoia (The Great Meaning of Metanoia), Walden chega à conclusão de que o termo veicula a idéia de “uma mudança geral da mente que se torna, em se desenvolvimento mais completo, uma regeneração intelectual e moral”.[1] Embora sustentando que a palavra denota primariamente uma mudança da mente, não devemos perder de vista que os seu significado não s limita à consciência intelectual, teórica, mas também inclui a esfera moral, a consciência propriamente dita. Tanto a mente como a consciência estão corrompidas, Tt. 1.15, e quando a nous de uma pessoa é mudada, ela não só recebe novo conhecimento, mas também a direção da sua vida consciente, a sua qualidade moral, é mudada também. Para particularizar mais, a mudança indicada pela palavra metanoia tem que ver. (1) com a vida intelectual, 2 Tm 2.25, para um melhor conhecimento de Deus e da Sua verdade, e uma salvadora aceitação desta (idêntica à ação da fé); (2) com a vida volitiva consciente, At 8.22, para um voltar-se para Deus que esta mudança é acompanhada por uma tristeza segundo Deus, 2 Co 7.10, e abre novos campos de fruição para o pecador. Em todos estes aspectos metanoia inclui uma oposição consciente à anterior. Esta oposição constitui um elemento essencial seu e, portanto, merece cuidadosa atenção. Converte-se não é apenas passar de uma direção consciente para outra, mas fazê-lo com uma aversão claramente percebida para com a direção anterior. Noutras palavras, metanoia tem, não somente um lado positivo, mas também um lado negativo: olha retrospectivamente e também prospectivamente. A pessoa convertida torna-se consciente da sua ignorância e do seu erro, da sua obstinação e da sua loucura. Sua conversão inclui a fé e o arrependimento. É triste dizer, mas a igreja foi aos poucos perdendo de vista o sentido original de metanoia. Na teologia latina, Lactânio a traduziu “resipiscentista”, um voltar a ser sábio, como se a palavra derivasse de meta e anoia, e denotasse um retorno da loucura ou da insensatez. Contudo, a maioria dos escritores latinos nos preferiu traduzi-la por “poenitentia”, o vocábulo que denota a tristeza e o pesar que se seguem quando uma pessoa para a Vulgata como tradução de metanoia, e sob, a influência da Vulgata, os tradutores ingleses traduziram a palavra grega por “repentance” (arrependimento), dando assim, ênfase ao elemento emocional e fazendo de metanoia um termo equivalente a metameleia. Nalguns casos, a deterioração foi mais longe ainda. A Igreja Católica Romana exteriorizou a idéia de arrependimento em seu sacramento da penitência, de modo que o termo metaonoeite do Testamento Grego (Mt 3.2) tornou-se poenitentiam agite – “fazei penitência”, na Versão Latina.

b. Epistrophe (forma verbal, epistrepho). Esta palavra é a segunda em importância em seguida a metanoia. Enquanto na Septuaginta metanoia é uma das traduções de nacham, as palavras epistrophe servem para traduzir as palavras hebraicas teshubhah e shubh. São usadas constantemente no sentido de retornar ou voltar. As palavras gregas devem ser lidas à luz do hebraico, para extrair-se o importante ponto, que a virada indicada é em realidade um retorno. No Novo Testamento, o substantivo epistrophe é usado só uma vez, em At 15.3, ao passo que o verbo ocorre várias vezes. Tem significação um tanto mais ampla que metanoeo, e realmente indica ao ato final da conversão. Denota, não apenas uma mudança da nous (da mente), mas acentua o fato de que uma nova relação é estabelecida, que a vida ativa é levada a mover-se noutra direção. É preciso ter isto em mente na interpretação de At 3.19, onde os dois termos são usados um ao lado do outro. Às vezes metanoeo contém unicamente a idéia de arrependimento enquanto que epistrepho sempre inclui o elemento fé. Metanoeo e pisteuein podem ser usados um ao lado do outro; não assim com epistrepho e pisteuein.

c. Metameleia (forma verbal, metamelomi). Somente a forma verbal é utilizada no Novo Testamento, e significa literalmente vir a afligir-se depois. É uma das traduções do hebraico nacham na Septuaginta. No Novo Testamento acha-se somente cinco vezes, a saber, em Mt 21.29, 32; 27, 3; 2 Co 7.10; Hb 7.21. É evidente, graças a estas passagens, que a palavra faz sobressair o elemento de arrependimento, embora não seja necessariamente o arrependimento verdadeiro. Nele o elemento negativo, retrospectivo e emocional está acima de tudo mais, enquanto que metanoeo também inclui um elemento volitivo e denota uma enérgica virada da vontade. Enquanto metanoeo ás vezes é usado no imperativo, nunca acontece isso com metamelomai. Os sentimentos não se deixam comandar. Esta palavra corresponde mais de perto ao termo latino poenitentia do que a palavra metanoeo.

 

A Idéia de Conversão. Definição.


A doutrina da conversão, naturalmente, como toda as outras doutrinas cristã, baseia-se na Escritura, sobre esta base deve ser aceita. Desde que a conversão é uma experiência consciente ocorrida nas vidas de muitos, o testemunho da experiência pode ser acrescentado ao da Palavra de Deus, mas esse testemunho, por mais valioso que seja, nada acrescenta à segura veracidade da doutrina ensinada na Palavra de Deus. Podemos ser gratos ao fato de que nos últimos anos a psicologia da religião deu considerável atenção ao fato da conversão, mas sempre se deve ter em mente que, embota tenha trazido à nossa atenção alguns fato interessantes, pouco ou nada fez para explicar a conversão como um fenômeno religioso. A doutrina escriturística da conversão baseia-se, não somente nas passagens que contêm um ou mais dos termos mencionados na seção anterior, mas também em muitas outras nas quais o fenômeno da conversão é descrito ou apresentado concretamente com exemples vivos. Nem sempre a Bíblia fala de conversão no mesmo sentido. Podemos distinguir os seguintes sentidos:

1. CONVERSÕES NACIONAIS. Nos dias de Moisés, de Josué e dos juízes, repetidamente o povo de Israel dava as costas a Jeová e, depois de experimentar o desprazer de Deus, arrependia-se dos seus pecados e retornava ao Senhor; houve uma conversão de Jonas, os ninivitas se arrependeram dos seus pecados e foram poupados pelo Senhor, Jn 3.10. Estas conversões eram simplesmente da natureza de reformas morais. Podem ter sido acompanhadas de algumas conversões religiosas reais de indivíduos, mas ficavam muito aquém da verdadeira conversão de todos os que pertenciam à nação. Em regra, eram muito superficiais. Apareciam sob a liderança de governantes piedosos, e quando eram substituídos por homens ímpios, o povo logo recaía em seus velhos hábitos.

2. CONVERSÕES TEMPORÁRIAS. A Bíblia se refere também a conversões de indivíduos que não representam nenhuma mudança do coração e, portanto, só têm significação passageira. Na parábola do Semeador Jesus fala dos que ouvem a palavra e logo a recebem com alegria, mas não têm raízes em si mesmos e, portanto, duram pouco. Quando lhes sobrevêm as tribulações, provações e perseguições, depressa se ofendem e caem. Mt 13.20, 21. Paulo faz menção de Hiemeneu e Alexandre, que “vieram a naufragar na fé”, 1 Tm 1.19, 20. Cf. também 2 Tm 2.17, 18. E em 2 Tm 4.10 ele se refere a Demas que o abandonara porque o amor ao presente século o dominara. E o escritor de Hebreus fala de alguns que caíram, sendo que eles “uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro”, Hb 6.4-6. Finalmente, a respeito de alguns que tinham voltado as costas aos fiéis, diz João: “Eles saíram do nosso meio, entretanto não eram dos nossos; porque, se tivessem sido nossos, teriam permanecido conosco”, 1 Jo 2.19. Tais conversões temporárias podem, por algum tempo, ter a aparência de conversões verdadeiras.

3. CONVERSÃO VERDADEIRA (CONVERSIO ACTUALIS PRIMA). A verdadeira conversão nasce da tristeza segundo Deus, e redunda numa vida de devoção a Deus, 2 Co 7.10. É uma mudança que tem suas raízes na obra de regeneração, e que é efetuada na vida consciente do pecador pelo Espírito de Deus; mudança de pensamentos e opiniões, de desejos e volições, que envolve a convicção de que a direção anterior da vida era insensata e errônea, e altera todo o curso da vida. Há dois lados nesta conversão, um ativo e o outro passivo; o primeiro sendo o ato de Deus pelo qual Ele muda o curso consciente da vida do homem, e o último, o resultado desta ação como se vê na mudança que o homem faz no curso da sua vida e em seu voltar-se para Deus. Conseqüentemente, pode-se dar uma dupla definição de conversão: (a) A conversão ativa é o ato de Deus pelo qual Ele faz com que o pecador regenerado, em sua vida consciente, se volte para Ele com arrependimento e fé. (b) A conversão passiva é o resultante ato consciente do pecador pelo qual ele, pela graça de Deus, volta-se para Deus com arrependimento e fé. Esta conversão é a conversão que nos interessa primordialmente na teologia. A Palavra de Deus contém vários exemplares notáveis dela, como, por exemplo, as conversões de Naamã, 2 Rs 5.15; de Manasses, 2 Cr 33.12, 13; de Zaqueu, Lc 19.8, 9; do cego de nascença, Jo 9.38; da mulher samaritana, Jo 4.29; do eunuco, At 8.30 e segtes.; de Cornélio, At 10.44 e segtes.; de Paulo, At 9.5 e segtes.; de Lídia, At. 16.14; e outras.

4. A CONVERSÃO REPETIDA. A Bíblia fala também de uma conversão repetida, na qual a pessoa convertida, depois de uma queda nos caminhos do pecado, retorna a Deus. Strong prefere não usar a palavra “conversão” para esta mudança, empregando antes palavras e frases como “rompimento, abandono, volta, negligências e transgressões” e “retorno a Cristo, confiança novamente depositada nele”. Mas a própria Escritura usa a palavra “conversão” para esses casos, Lc 22.32; Ap 2.5, 16, 21, 22; 3.3, 19. Deve-se entender, que a conversão, no sentido estritamente soteriológico, nunca se repete. Os que experimentaram a verdadeira conversão podem cair temporariamente sob os falsos encantos do mal e cair em pecado; até podem, às vezes, perambular longe do lar; mas a nova vida forçosamente se reafirmará e por gim os levará a voltar para Deus com corações penitentes.

 

C. Características da Conversão.


A conversão é simplesmente uma parte do processo salvífico. Mas, porque é parte de um processo orgânico, naturalmente está ligada de modo íntimo com cada uma das outras partes. Às vezes se vê a tendência, especialmente em nosso país, de identifica-la com alguma das outras partes do processo, ou de exalta-la como se se tratasse da parte muitíssimo mais importante do processo. É bem conhecido o fato de que alguns, ao falarem da sua redenção, nunca vão além da sua conversão, esquecendo-se de falar do seu crescimento espiritual, nos anos posteriores.Isto sem dúvida se deve ao fato de que na experiência deles, a conversão sobressai como uma crise incisivamente marcante, crise que exigiu da parte deles. Tendo-se em conta a tendência atual de se perder a percepção das linhas de demarcação presentes no processo de salvação, é bom lembrar-nos da veracidade do adágio latino: “Qui bene distinguet, bene docet” (“Quem distingue bem, ensina bem”). Devemos notar as seguintes características da conversão:

1. A conversão pertence aos atos recriadores de Deus, e não aos Seus atos judiciais. Ela não altera a posição, mas, sim, a condição do homem. Ao mesmo tempo, relaciona-se estreitamente com as operações divinas na esfera judicial. Na conversão, o homem toma consciência do fato de que ele merece a condenação, e também é levado ao reconhecimento desse fato. Conquanto isto já pressuponha fé, ela conduz também a maior manifestação da fé em Jesus Cristo, a uma segura confiança nele para a salvação. E esta fé, por sua vez, pela apropriação da justiça de Jesus Cristo, serve de instrumento para a justificação do pecador. Na conversão, o homem se desperta para a jubilosa segurança de que todos os seus pecados são perdoados com base nos méritos de Jesus Cristo.

2. Como a palavra metanoia claramente indica, a conversão tem lugar, não na vida subconsciente do pecador, mas em sua vida consciente. Isto não significa que ela não tem suas raízes na vida subconsciente. Sendo um efeito direto da regeneração, naturalmente inclui uma transição nas operações próprias da nova vida, do subconsciente para o consciente. Em vista disso, pode-se dizer que a conversão começa nas profundezas da personalidade, mas, como um ato completo, certamente está dentro das linhas abrangidas pela vida consciente. Isto põe em relevo a estrita conexão existente entre a regeneração e a conversão. A conversão que não esteja arraigada na regeneração, não é conversão verdadeira.

3. A conversão assinala o início, não só do despojamento do velho homem, da fuga do pecado, mas também do revestimento do novo homem, da luta pela santidade no viver. Na regeneração, o princípio pecaminoso da velha vida já é substituído pelo princípio santo da nova vida. Mas é somente na conversão que esta transição penetra a vida consciente, levando-a numa nova direção, rumo a Deus. O pecador abandona conscientemente a vida antiga e pecaminosa e se volta para uma vida em comunhão com Deus e a Ele devotada. Não quer dizer, porém, que a luta entre a velha e a nova está acabada de uma vez; ela continuará enquanto durar a vida do homem.

4. Tomando a palavra “conversão” em seu sentido mais específico, ela indica uma mudança instantânea, e não um processo como o da santificação. É uma mudança que se dá uma vez e não se pode repetir, embora, como acima exposto, a Bíblia também denomine conversão o retorno do cristão a Deus, depois de haver caído em pecado. Neste caso, é a volta do crente para Deus e para a santidade, depois de os haver perdido de vista temporariamente. Quanto à regeneração, não temos a menor possibilidade de falar em repetição; mas na vida consciente do cristão há altos e baixos, períodos de íntima comunhão com Deus e períodos de afastamento dele.

5. Contrariamente aos que pensam na conversão unicamente como uma crise definida na vida, deve-se notar que, conquanto a conversão possa ser uma crise agudamente marcante, pode ser também uma mudança muito gradativa. A teologia mais antiga sempre distinguia entre conversões súbitas e graduais (como nos casos de Jeremias, João Batista e Timóteo); e em nossos dias, a psicologia da religião acentua a mesma distinção. As conversões marcadas por crise são mais freqüentes na épocas de declínio religioso, e nas vidas daqueles que não gozaram os privilégios de uma verdadeira educação religiosa, e que vagavam longe das veredas da verdade, da retidão e da santidade.

6. Finalmente, em nossos dias, quando muitos psicólogos mostram uma inclinação para reduzir a conversão a um fenômeno geral e natural do período da adolescência, é necessário assinalar que, quando falamos em conversão, temos em mente uma obra sobrenatural de Deus, resultando numa mudança religiosa. Os psicólogos às vezes insinuam que a conversão é apenas um fenômeno natural, chamando a atenção para o fato de que mudanças repentinas ocorrem também na vida moral e intelectual do homem. Alguns deles sustentam que a emergência da idéia de sexo desempenha um papel importante na conversão. Contra esta tendência racionalista e naturalista, é preciso afirmar o caráter específico da conversão religiosa.

Fonte: Teologia Sistemática, Louis Berkhof - Luz Para o Caminho



* No grego: anastas poreusomai, levantando-me, irei. Nota do tradutor.
[1] P. 107.

A REALIDADE DA PROVIDÊNCIA


Não há como negar a existência da obra providencial de Deus, porque não há coisas que venham a acontecer por mero acaso na vida deste mundo e, muito menos, na existência individual das pessoas. Aqueles que negam as obras providenciais de Deus acabam caindo num fatalismo ou na idéia do acaso. O fato é que nenhum ser humano pensa que é absolutamente independente dos eventos que acontecem neste mundo. Os seres humanos não possuem controle sobre os eventos do universo e sobre a vida pessoal deles.

O cristão, como lhe deve ser próprio, crê num Deus transcendente e, ao mesmo tempo, imanente, que está envolvido com a sua criação “sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1.3) e, sabedor de que ninguém escapa do controle de Deus, como Paulo, ele também crê que “dele e por meio dele e para ele são todas as cousas” (Rm 11.36).

A providência divina não deve ser vista apenas nos atos agradáveis que acontecem na vida dos homens, como as provisões nas horas de necessidade, mas também nos atos de Deus que implicam em sofrimentos e aflições dos seres humanos (o que inclui os seus pecados) que acabam concorrendo, de um lado, para o bem dos que amam a Deus e, de outro lado, para o mal dos que não o amam.

Quando encorajado por sua mulher a amaldiçoar Deus e morrer, por causa dos seus sofrimentos, o crente Jó entendeu que os males que ele sofria provinham das mãos do Todo-Poderoso. Por essa razão, ele replica à sua esposa: “Falas como qualquer doida; temos recebido o bem de Deus, e não receberíamos também o mal?” (Jó 2.10). A mesma perspectiva providencial teve o profeta Oséias, quando sentiu a mão pesada de Deus sobre o seu povo. Então, ele conclama o povo diante da dor: “Vinde, tornemos para o Senhor, porque ele nos despedaçou e nos sarará; fez a ferida, e a ligará” (Os 6.1).

Em sã consciência, nenhum cristão ousará negar a realidade da providência divina na vida de todos os homens. Todavia, somente os cristãos genuínos a reconhecem e por ela dão graças!

O Desprezo à Doutrina da Providência


Não obstante a realidade da providência divina, tem havido um certo desprezo à doutrina da providência nas últimas décadas no mundo chamado cristão. Ela tem sido esquecida ou negligenciada nos ensinos de seminários e das igrejas atualmente, no mínimo, por razões teológicas, mas há razões filosóficas e cientificistas por detrás dessa despreocupação por ela.

 Berkouwer escreveu o primeiro capítulo de seu livro sobre a providência falando da crise da doutrina da providência no século XX.[1] Quase não há nada escrito sobre a providência de Deus nas últimas décadas no cristianismo histórico, se levarmos em conta a grande importância dessa doutrina. Na língua portuguesa praticamente inexiste qualquer publicação substanciosa a respeito. No entanto, a igreja vai crescendo em tamanho, mas sem o conhecimento da obra providencial de Deus e, por causa dessa lacuna, negativamente falando, vai crescendo também na ignorância desse assunto tão basilar à saúde de sua vida espiritual.

Precisamos devolver à igreja contemporânea o que ela perdeu no século XX, e que foi crido de uma maneira muito vívida desde o período da Reforma do século XVI. No período das Confissões de fé protestantes houve uma grande ênfase na doutrina da providência, terminando a ênfase no período do escolasticismo protestante. Com muita força as confissões falaram da obra de preservação e governo de Deus sobre todo o universo. Depois, pouco a pouco, o interesse nela foi caindo.

Há algumas razões que, historicamente, levaram a igreja cristã, de um modo geral, a possuir uma certa despreocupação pela doutrina da providência divina.

 

1) O Desenvolvimento do Naturalismo Científico no Século XIX


O século XIX foi marcado pelo desenvolvimento da obra missionária e, portanto, da grande expansão da igreja em todos os continentes. Esse é apenas um lado da história. Ao mesmo tempo em que houve um crescimento numérico, houve também um decréscimo na ênfase doutrinária da igreja, que havia sido típico de períodos anteriores. Com esse enfraquecimento, as brechas para as influências externas na vida da igreja começaram a se tornar maiores. Quanto mais aumentava o calcanhar de Aquiles da Igreja, mais atacável ela veio se tornar. Os ataques do liberalismo teológico emergente começaram a chacoalhar os alicerces da teologia da ortodoxia. Várias doutrinas básicas do cristianismo foram atacadas violentamente durante essa época.

Todavia, mesmo em tempos de crise da igreja, quando outras doutrinas foram objeto de grande crítica (como a doutrina do nascimento virginal, ressurreição e ascensão, que padeceram diante do ataque da teologia liberal no séculos XIX e XX), a princípio a doutrina da providência não sofreu tanto. Ela foi usada por cristãos que começaram a assimilar o pensamento de um evolucionismo cientificista. Por isso, Berkouwer diz que “a doutrina da providência foi freqüentemente usada como um outro modo de afirmar a crença na evolução progressiva do homem.”[2]

Isso quer dizer que, pelo menos a princípio, o estudo da providência não sofreu grande abalo nos primeiros tempos do darwinismo. Mesmo embora o estudo da providência não tenha sofrido forte abalo naquela época, os fundamentos do cristianismo foram alterados pelo ensino do evolucionismo. Os efeitos apareceriam mais tarde na fraqueza da teologia cristã minada por um cientificismo humanista.

O estudo da ciência começou dispensando a idéia do Deus presente neste mundo por enfatizar o naturalismo. Todos os fenômenos acontecidos neste mundo passaram a possuir uma causa natural, dentro dele próprio, nunca tendo uma causalidade fora de si mesmo, isto é, na obra providencial de Deus. A natureza começou a ser estudada como auto-causada. Ao invés de atribuir os fenômenos da natureza a um Princípio causal último que é Deus, os estudiosos começaram a falar da Mãe-Natureza como sendo a explicação causal última das coisas. O nosso mundo tornou-se independente, autônomo e o estudo dos fenômenos físicos ficou trancafiado nas causas naturais.

O aparecimento do estudo das origens das espécies foi apoiado pelo desenvolvimento do deísmo. O deísmo criou o pano-de-fundo teológico que acobertou o desenvolvimento do evolucionismo. Deus estava fora deste mundo, segundo o deísmo, sem possuir qualquer envolvimento com ele e, portanto, todas as explicações sobre os fenômenos acontecidos no universo tinham que ter sua origem na própria natureza. Não sobrou espaço para Deus por causa do naturalismo científico. Portanto, ficou sem sentido o estudo da operação providencial de Deus.

 

2) O Aparecimento da Subjetividade da Religião


Especialmente depois de Friedrich Schleiermacher, tornou-se lugar comum falar-se na religião como alguma coisa não além da subjetividade humana. Toda a manifestação religiosa não passava de uma erupção de sentimentos vindos do coração do homem. Obviamente, essa manifestação religiosa não era o desenvolvimento do semen religionis ensinado por João Calvino em suas Institutas da Religião Cristã (porque o estudo da teologia de Calvino foi, na prática, deixado de lado), mas apenas um sentimento da própria subjetividade humana, sem que esta fosse despertada pela revelação divina que está fora de nós e causa impacto nos seres humanos.

Embora a religião seja um fenômeno universal entre os humanos — e isto é reconhecido por todos porque a experiência não deixa dúvida — passou a crer-se que ela era apenas uma expressão de nossas necessidades egoístas interiores. Nada mais. Essa corrente filosófica desenvolveu-se com Ludwig Feuerbach, Neitzsche, Marx e Freud.

A idéia da divindade entre os homens nasce em sua subjetividade sem que nunca seja impactada por alguma coisa que proceda de fora de deles. Não há revelação divina que provoque qualquer sentimento de religiosidade. A religião é apenas produto do “eu” carente. Feuerbach

“explicou a religião como um desejo de projeção egoísta e subjetivo. Analisando a religião empiricamente, Feuerbach chegou à conclusão de que os deuses não foram nada além dos desejos projetados e objetivisados. O homem, ele disse, era o começo, o meio e o fim da religião; a teologia era antropologia.”[3]

A religião passou a ser um fenômeno puramente humano, sem qualquer relacionamento com alguém de fora da esfera humana. Deus ficou de fora da religião no pensamento de Feuerbach. Quando mais se estuda a religião, mais se conhece o homem, no pensamento de Feuerbach. Por isso que, na teologia antropológica, a noção da interferência providencial de Deus não tem lugar.

O pensamento de Nietzsche levou à mesma conclusão. Para esse pessimista, a fé era a projeção de um ideal do homem, não a resposta humana à intervenção divina no mundo que ele criou. Deus estava morto na sua filosofia e a religião não tinha nada a ver com a sua ação no mundo dos homens.

Sigmund Freud não conseguiu fugir da subjetividade da religião. Para ele, a religião era uma “projeção do homem cercado e ameaçado pelos poderes da natureza. Sem defesa contra essas ameaças, o homem procurou por lugares de refúgio.”[4] A idéia da providência divina surgiu da imaginação dos homens. A providência a que ele se refere é apenas uma projeção daquilo que nós fazemos em favor de nós próprios. Por essa razão, ele disse em uma de suas obras:

“Nós dizemos a nós mesmos que é muito bonito, de fato, que haja um Deus criador do mundo, uma doce providência, uma ordem moral, e uma vida por vir — mas é digno de nota que tudo isto seja exatamente como deveríamos desejar para nós próprios.” [5]

Isto é uma projeção de nossos sentimentos, uma ilusão simplesmente, não o resultado da realidade de um Deus presente entre nós, o seu mundo criado. Com esse sentimento interior projetado, os seres humanos vivem e dele se alimentam. Essa é a providência para suas vidas.

Por causa da carência do “eu” mais tarde, com Karl Marx e o desenvolvimento do materialismo científico do comunismo, a religião veio a ser concebida como o “ópio do povo”, para entorpecê-lo diante dos problemas emergentes. A religião seria apenas um escape para a miséria e os males sociais. Marx foi de encontro à idéia da religião porque ele a virou de cabeça para baixo. Ele disse “Não” à religião cristã. Todavia, a idéia de religião não desapareceu, mas continuou sendo o anestésico para as dores causadas pelos sofrimentos pessoais e sociais do mundo. Ela permaneceu apenas como expressão da subjetividade humana.

Ora, se a religião é apenas uma projeção dos nossos sentimentos interiores, o que ela tem a ver com a intervenção da providência divina? Nada. A religião depende das nossas sensações interiores e não da resposta ao impacto da revelação divina.

 

3) A Erupção das Duas Guerras Mundiais


Porque a princípio alguns cristãos começaram a esposar os postulados do naturalismo científico, a doutrina da providência não sofreu um ataque muito violento. Por algum tempo a doutrina da providência ainda sobreviveu dentro do cristianismo histórico. O evolucionismo começou a reinar no século XIX, mas a doutrina da providência divina foi preservada quase que intacta até uma certa altura, quando se deu o irrompimento das duas guerras mundiais, e o otimismo em que o mundo vivia com respeito à bondade do homem, caiu por terra e, com isso, apareceu a dúvida de que Deus continuava a agir providencialmente com bondade em nosso mundo.

Com o desapontamento sobre a bondade humana após a deflagração dos dois grandes conflitos mundiais, muitas pessoas começaram a pender para o agnosticismo que é o resultado do deísmo. Começou-se a duvidar do envolvimento de Deus com este mundo e de sua participação na história dele. “Em todo lugar dúvidas profundas foram levantadas como respeito à realidade de Deus; os homens não somente negaram a Providência sobre todas as coisas, mas ridicularizaram a idéia por apontarem para a realidade ao redor de nós.”[6] Com a derrocada da belle epoque, surgiram com toda força os movimentos emergentes do existencialismo. Foi o renascimento do subjetivismo, mas com características de maior incredulidade. No cenário político houve o surgimento do comunismo que negou a idéia de religião e a considerou como sendo apenas ópio do povo. Desacreditou-se em Deus em muitos círculos do mundo pensante, à medida que os males sociais se tornaram cada vez maiores.

Nunca houve tempo de tantas tempestades filosóficas em que a confissão da igreja protestante sobre a providência divina tenha sofrido tão sério golpe! Com o surgimento das filosofias e com o aumento dos problemas sociais no mundo a pregação sobre a providência divina tornou-se inviável porque as pessoas começaram a duvidar de que havia um Deus preocupado com este grande e sofrido universo. Em alguns círculos cristãos, a ortodoxia do cristianismo entrou em crise e não foi suficientemente forte para reverter a situação. A igreja na Europa estava morrendo à míngua, pois possuía os postulados do liberalismo e, com a perda da fé na bondade humana, ficou sem o suporte que a belle epoque lhe dava. Berkouwer, um contemporâneo desse tempo de crise disse que “a confissão da providência de Deus tem se tornado, agora mais do que nunca, numa pedra-de-tropeço.”[7] Diante das duas grandes catástrofes mundiais, o cristianismo histórico em algumas terras ficou sem muita coisa que dizer a respeito da providência divina porque, ao invés de aterem-se aos ensinamentos da Escritura sobre como Deus governa a história, ficaram apenas com a experiência amarga dos acontecimentos da época, sem terem explicações que dar aos opositores incrédulos, os adversários do cristianismo.

O cristianismo liberal, que ocupava a maior parte das igrejas européia e americana, falhou em responder às questões levantadas, porque abandonaram a crença na inspiração das Escrituras, e se esqueceram de buscar nela a resposta para os atos providenciais de Deus na história contemporânea. Muitos cristãos sinceros acabaram por ficar na mesma situação do autor do Salmo 73 que, observando a prosperidade dos ímpios e o sofrimento de justos, ficou perplexo e duvidou da bondade providencial de Deus. Como o salmista, muitos acabaram entrando em colapso espiritual e houve crise com respeito à soberania de Deus. Eles falharam no entendimento do relacionamento dos juízos parciais de Deus sobre os seres humanos, por causa dos seus pecados. Eles pensaram que Deus tinha a obrigação de impedir qualquer manifestação de maldade na vida dos homens. Olvidaram-se de que a catástrofe que ameaça a vida no mundo freqüentemente é uma imposição penal (embora apenas parcial) de Deus sobre o mundo pecador. Eles pensaram humanisticamente sobre a história. Esqueceram-se de que Deus conduz a história que de antemão escreveu. Perderam o sentido da verticalidade da relação Deus-homem.

Quando isto acontece, os seres humanos começam a viver sem propósito na vida. Foi nessa hora que a crise existencial se avolumou e tudo acabou sendo “vaidade de vaidades”, à semelhança da cosmovisão do antigo Pregador. O fatalismo, então, passou a ser a crença de muitos, não a crença na providência divina. Berkouwer diz que esse fenômeno passou a ser um resultado da secularização. “Deus é estranho ao homem; e o homem se torna num estranho no mundo de Deus”.[8]

As duas grandes guerras foram um balde de água fria naqueles que criam num Deus providente e cheio de cuidados pelo mundo. As atrocidades cometidas nas guerras acabaram com as esperanças humanizantes da teologia liberal que já havia dominado as igrejas da Europa e da América do Norte, as duas outrora grandes e pujantes fontes de obra missionária. A ortodoxia protestante foi ficando cada vez mais fraca e, dentro do cristianismo mundial, perdeu seu interesse pelo estudo da providência divina porque, para muitos cristãos que não haviam sido devidamente educados na doutrina, a providência significava unicamente Deus agindo benévola e agradavelmente na vida dos seres humanos de modo que eles são sempre protegidos e guardados de todo mal. Essa visão de providência desapareceu do conceito de muitos cristãos. Em tempos quando Deus exerce seus juízos parciais sobre os homens, fazendo com que desgraças e infortúnios apareçam na vida deles, as mesmas perguntas acontecem: “Por que? Até quando? Onde está o Deus dos cristãos?” O grande interesse no estudo da providência sempre está ligado às benesses que ele envia para o mundo. Quando essas benesses desaparecem, pelo menos temporariamente, o interesse pelo estudo da providência freqüentemente diminui na teologia da igreja.

Fonte: O Ser de Deus e as suas obras, A Providência - Dr. Heber Carlos de Campos - Editora Cultura Cristã, 2001



[1] G. C. Berkouwer, The Providence of God, (Eerdmans, 1952), pp. 9-32.
[2] G. C. Berkouwer, The Providence of God (Grand Rapids: Eerdmans, 1952), 13.
[3] Berkouwer, The Providence of God, 22.
[4] Ibid., 22.
[5] Sigmund Freud, Die Zukunft einer Illusion, 1928, 53 (Berkouwer, The Providence of God, 22).
[6] Berkouwer, The Providence of God, 14.
[7] Berkouwer, The Providence of God, 15.
[8] Berkouwer, The Providence of God, 19.