O relacionamento dos cristãos com a cultura na qual estão inseridos sempre representou um grande desafio para eles . Opções como amoldar-se, rejeitar a cultura , idolatrá-la ou tentar redimi-la têm encontrado adeptos em todo lugar e época . Em nosso país , com uma cultura tão rica , variada e envolvente, o desafio parece ainda maior nos dias atuais . Como aqueles que crêem em Jesus Cristo e adotam os valores bíblicos quanto à família , trabalho , lazer , conhecimento e as pessoas em geral podem se relacionar com esta cultura ?
Existem muitas definições disponíveis e parecidas de cultura . No geral , define-se como o conjunto de valores , crenças e práticas de uma sociedade em particular , que inclui artes , religião , ética , costumes , maneira de ser , divertir-se, organizar-se, etc.
Os cristãos acrescentam um item a mais a qualquer definição de cultura , que é a sua contaminação. Não existe cultura neutra , isenta , pura e inocente . Ela reflete a situação moral e espiritual das pessoas que a compõem, ou seja, uma mistura de coisas boas decorrentes da imagem de Deus no ser humano e da graça comum , e coisas pecaminosas resultantes da depravação e corrupção do coração humano . Toda cultura , portanto , por mais civilizada que seja, traz valores pecaminosos , crenças equivocadas, práticas iníquas que se refletem na arte , música , literatura , cinema , religiões , costumes e tudo mais que a compõe.
Deste ponto de vista a definição de cultura é bem próxima à definição que a Bíblia dá de "mundo ," a saber , aquele sistema de valores , crenças , práticas e a maneira de viver das pessoas sem Deus . Poderíamos dizer que “mundo ” compreende os traços da cultura humana que refletem a sua decadência moral e espiritual e seu antagonismo contra Deus .
De acordo com João as paixões carnais , a cobiça e a arrogância do homem marcam o mundo . Como tal , o mundo é frontalmente inimigo de Deus e os cristãos não devem amá-lo:
1João 2:15-16 - "Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo . Se alguém amar o mundo , o amor do Pai não está nele. Porque tudo que há no mundo , a concupiscência da carne , a concupiscência dos olhos e a soberba da vida , não procede do Pai , mas procede do mundo ."
Tiago vai na mesma linha :
Tiago 4:4 - "Infiéis, não compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus ? Aquele , pois , que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus ".
Escrevendo aos romanos , Paulo os orienta a não se moldarem ao presente século - um conceito escatológico do mundo presente , debaixo da lei e do pecado e caminhando para seu fim :
O próprio Jesus ensinou que o mundo o odeia e odeia aqueles que são seus dicípulos, pois não são do mundo :
João 15:18-19 – “Se o mundo vos odeia, sabei que , primeiro do que a vós outros , me odiou a mim . Se vós fôsseis do mundo , o mundo amaria o que era seu ; como , todavia , não sois do mundo , pelo contrário , dele vos escolhi, por isso , o mundo vos odeia”.
Ao mesmo tempo em que a Bíblia define o mundo de maneira negativa , ela admite que existem coisas boas na sociedade em decorrência do homem ainda manter a imagem de Deus – em que pese a Queda – e em decorrência de Deus agir na humanidade em geral de maneira graciosa . Deus concede às pessoas , sendo elas cristãs ou não , capacidade , habilidades , perspicácia , criatividade , talentos naturais para as artes em geral , para a música – enfim , aquilo que chamamos de graça comum . É interessante que os primeiros instrumentos musicais mencionados na Bíblia aparecem no contexto da descendência de Caim (Gênesis 4:21) bem como os primeiros ferreiros (4:22) e fazedores de tendas (4:20). Paulo conhecia e citou vários autores da sua época , que certamente não eram cristãos (Epimênides, Tt 1:12; Menander, 1Cor 15:32; Aratus , Acts 17:28). Jesus participou de festas de casamento (João 2) e Paulo não desencorajou os crentes de Corinto a participar de refeições com seus amigos pagãos , a não ser em alguns casos de consciência (1Co 10:27-28).
Dá para ver porque ao longo da história a Igreja cristã foi considerada algumas vezes como obscurantista , reacionária , um gueto contra-cultural. Nem sempre os seus inimigos perceberam que os cristãos , boa parte do tempo , estavam reagindo ao mundo , àquilo que existe de pecaminoso na cultura , e não à cultura em si . Quando missionários cristãos lutam contra a prática indígena de matar crianças , eles não estão querendo acabar com a cultura dos índios , mas redimi-la dos traços que o pecado deixou nela. Eles estão lutando contra o mundo . Quando cristãos criticam Darwin, não estão necessariamente deixando de reconhecer sua contribuição para nosso conhecimento dos processos naturais , mas estão se posicionando contra a filosofia naturalista que controlou seu pensamento . Quando torcem o nariz para Jacques Derrida, não estão negando sua correta percepção das ambigüidades na linguagem , mas sua conclusão de que não existe sentido num texto . Gosto de Jorge Amado mas abomino seu gosto pela pornografia ,
A contextualização sempre foi um desafio para os missionários e teólogos cristãos . De que maneira apresentar e viver o Evangelho em diferentes culturas ? Pessoalmente , acredito que há princípios universais que transcendem as culturas . Eles são verdadeiros em qualquer lugar e em qualquer época . Adultério , por exemplo , é sempre adultério . Pregar o Evangelho numa cultura onde o adultério é visto como normal significa identificá-lo como pecado e lutar contra ele , buscando redimir os adúlteros e adúlteras e restaurar os padrões bíblicos do casamento e da família . Enfim , redimir e transformar a cultura , fazê-la refletir os princípios do Reino de Deus .
É preciso reconhecer que nem sempre os cristãos conseguiram perceber a distinção entre mundo e cultura . Historicamente, grupos cristãos têm sido contra a ciência , a arte , a música e a literatura em geral , sem fazer qualquer distinção . Todavia , estes grupos fundamentalistas não representam a postura cristã para com a cultura e nem refletem o ensino bíblico quanto ao assunto . Os reformados, em particular , caracteristicamente sempre se mostraram sensíveis às artes e viam nelas uma manifestação da graça comum de Deus à humanidade . Apreciavam a pintura , a música , a poesia e a literatura . Entre eles , temos os puritanos . Cabe aqui a descrição que C. S. Lewis fez deles:
Devemos imaginar estes puritanos como o extremo oposto daqueles que se dizem puritanos hoje . Imaginemo-los jovens , intensamente fortes , intelectuais , progressistas , muito atuais . Eles não eram avessos a bebidas com álcool ; mesmo à cerveja , mas os bispos eram a sua aversão . Puritanos fumavam (na época não sabiam dos efeitos danosos do fumo ), bebiam (com moderação), caçavam, praticavam esportes , usavam roupas coloridas, faziam amor com suas esposas, tudo isto para a glória de Deus , o qual os colocou em posição de liberdade . (...) [Os puritanos eram] jovens , vorazes , intelectuais progressistas , muito elegantes e atualizados ... [e] ... não havia animosidade entre os puritanos e humanistas . Eles eram freqüentemente as mesmas pessoas , e quase sempre o mesmo tipo de pessoa : os jovens no movimento , os impacientes progressistas exigindo uma “limpeza purificadora”.[1]
O grande desafio que Jesus e os apóstolos deixaram para os cristãos foi exatamente este , de estar no mundo , ser enviado ao mundo , mas não ser dele (Jo 17:14-18). Implica em não se conformar com o presente século , mas renovar-se diariamente (Rm 12:1-3), de não ir embora amando o presente século , como Demas (2Tm 4:10). É ser sal e luz .
[1] Citado por Douglas Wilson em “O Puritano Liberado,” Jornal Os Puritanos 5/1 (1997) e por L. Ryken, Santos no Mundo , pp. 19, 177.
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