Não há como negar a existência da obra providencial de Deus, porque
não há coisas que venham a acontecer por mero acaso na vida deste mundo e,
muito menos, na existência individual das pessoas. Aqueles que negam as obras
providenciais de Deus acabam caindo num fatalismo ou na idéia do acaso. O fato
é que nenhum ser humano pensa que é absolutamente independente dos eventos que
acontecem neste mundo. Os seres humanos não possuem controle sobre os eventos
do universo e sobre a vida pessoal deles.
O cristão, como lhe deve ser próprio, crê num Deus transcendente e,
ao mesmo tempo, imanente, que está envolvido com a sua criação “sustentando
todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1.3) e, sabedor de que ninguém
escapa do controle de Deus, como Paulo, ele também crê que “dele e por meio
dele e para ele são todas as cousas” (Rm 11.36).
A providência divina não deve ser vista apenas nos atos agradáveis
que acontecem na vida dos homens, como as provisões nas horas de necessidade,
mas também nos atos de Deus que implicam em sofrimentos e aflições dos seres
humanos (o que inclui os seus pecados) que acabam concorrendo, de um lado, para
o bem dos que amam a Deus e, de outro lado, para o mal dos que não o amam.
Quando encorajado por sua mulher a amaldiçoar Deus e morrer, por
causa dos seus sofrimentos, o crente Jó entendeu que os males que ele sofria
provinham das mãos do Todo-Poderoso. Por essa razão, ele replica à sua esposa: “Falas
como qualquer doida; temos recebido o bem de Deus, e não receberíamos também o
mal?” (Jó 2.10). A mesma perspectiva providencial teve o profeta Oséias, quando
sentiu a mão pesada de Deus sobre o seu povo. Então, ele conclama o povo diante
da dor: “Vinde, tornemos para o Senhor, porque ele nos despedaçou e nos sarará;
fez a ferida, e a ligará” (Os 6.1).
Em sã consciência, nenhum cristão ousará negar a realidade da
providência divina na vida de todos os homens. Todavia, somente os cristãos
genuínos a reconhecem e por ela dão graças!
O Desprezo à Doutrina da Providência
Não obstante a realidade da providência divina, tem havido um certo
desprezo à doutrina da providência nas últimas décadas no mundo chamado
cristão. Ela tem sido esquecida ou negligenciada nos ensinos de seminários e
das igrejas atualmente, no mínimo, por razões teológicas, mas há razões
filosóficas e cientificistas por detrás dessa despreocupação por ela.
Berkouwer escreveu o primeiro
capítulo de seu livro sobre a providência falando da crise da doutrina da
providência no século XX.[1] Quase não
há nada escrito sobre a providência de Deus nas últimas décadas no cristianismo
histórico, se levarmos em conta a grande importância dessa doutrina. Na língua
portuguesa praticamente inexiste qualquer publicação substanciosa a respeito.
No entanto, a igreja vai crescendo em tamanho, mas sem o conhecimento da obra
providencial de Deus e, por causa dessa lacuna, negativamente falando, vai
crescendo também na ignorância desse assunto tão basilar à saúde de sua vida
espiritual.
Precisamos devolver à igreja contemporânea o que ela perdeu no
século XX, e que foi crido de uma maneira muito vívida desde o período da
Reforma do século XVI. No período das Confissões de fé protestantes houve uma
grande ênfase na doutrina da providência, terminando a ênfase no período do
escolasticismo protestante. Com muita força as confissões falaram da obra de
preservação e governo de Deus sobre todo o universo. Depois, pouco a pouco, o
interesse nela foi caindo.
Há algumas razões que, historicamente, levaram a igreja cristã, de
um modo geral, a possuir uma certa despreocupação pela doutrina da providência
divina.
1) O Desenvolvimento do Naturalismo Científico no Século XIX
O século XIX foi marcado pelo desenvolvimento da obra missionária e,
portanto, da grande expansão da igreja em todos os continentes. Esse é apenas
um lado da história. Ao mesmo tempo em que houve um crescimento numérico, houve
também um decréscimo na ênfase doutrinária da igreja, que havia sido típico de
períodos anteriores. Com esse enfraquecimento, as brechas para as influências
externas na vida da igreja começaram a se tornar maiores. Quanto mais aumentava
o calcanhar de Aquiles da Igreja, mais atacável ela veio se tornar. Os ataques
do liberalismo teológico emergente começaram a chacoalhar os alicerces da
teologia da ortodoxia. Várias doutrinas básicas do cristianismo foram atacadas
violentamente durante essa época.
Todavia, mesmo em tempos de crise da igreja, quando outras doutrinas
foram objeto de grande crítica (como a doutrina do nascimento virginal,
ressurreição e ascensão, que padeceram diante do ataque da teologia liberal no
séculos XIX e XX), a princípio a doutrina da providência não sofreu tanto. Ela
foi usada por cristãos que começaram a assimilar o pensamento de um
evolucionismo cientificista. Por isso, Berkouwer diz que “a doutrina da providência
foi freqüentemente usada como um outro modo de afirmar a crença na evolução
progressiva do homem.”[2]
Isso quer dizer que, pelo menos a princípio, o estudo da providência
não sofreu grande abalo nos primeiros tempos do darwinismo. Mesmo embora o estudo
da providência não tenha sofrido forte abalo naquela época, os fundamentos do
cristianismo foram alterados pelo ensino do evolucionismo. Os efeitos
apareceriam mais tarde na fraqueza da teologia cristã minada por um
cientificismo humanista.
O estudo da ciência começou dispensando a idéia do Deus presente
neste mundo por enfatizar o naturalismo. Todos os fenômenos acontecidos neste
mundo passaram a possuir uma causa natural, dentro dele próprio, nunca tendo
uma causalidade fora de si mesmo, isto é, na obra providencial de Deus. A
natureza começou a ser estudada como auto-causada. Ao invés de atribuir os
fenômenos da natureza a um Princípio causal último que é Deus, os estudiosos
começaram a falar da Mãe-Natureza como sendo a explicação causal última das coisas.
O nosso mundo tornou-se independente, autônomo e o estudo dos fenômenos físicos
ficou trancafiado nas causas naturais.
O aparecimento do estudo das origens das espécies foi apoiado pelo
desenvolvimento do deísmo. O deísmo criou o pano-de-fundo teológico que
acobertou o desenvolvimento do evolucionismo. Deus estava fora deste mundo,
segundo o deísmo, sem possuir qualquer envolvimento com ele e, portanto, todas
as explicações sobre os fenômenos acontecidos no universo tinham que ter sua
origem na própria natureza. Não sobrou espaço para Deus por causa do
naturalismo científico. Portanto, ficou sem sentido o estudo da operação
providencial de Deus.
2) O Aparecimento da Subjetividade da Religião
Especialmente depois de Friedrich Schleiermacher, tornou-se lugar
comum falar-se na religião como alguma coisa não além da subjetividade humana.
Toda a manifestação religiosa não passava de uma erupção de sentimentos vindos
do coração do homem. Obviamente, essa manifestação religiosa não era o
desenvolvimento do semen religionis
ensinado por João Calvino em suas Institutas
da Religião Cristã (porque o estudo
da teologia de Calvino foi, na prática, deixado de lado), mas apenas um
sentimento da própria subjetividade humana, sem que esta fosse despertada pela
revelação divina que está fora de nós e causa impacto nos seres humanos.
Embora a religião seja um fenômeno universal entre os humanos — e
isto é reconhecido por todos porque a experiência não deixa dúvida — passou a
crer-se que ela era apenas uma expressão de nossas necessidades egoístas
interiores. Nada mais. Essa corrente filosófica desenvolveu-se com Ludwig
Feuerbach, Neitzsche, Marx e Freud.
A idéia da divindade entre os homens nasce em sua subjetividade sem
que nunca seja impactada por alguma coisa que proceda de fora de deles. Não há
revelação divina que provoque qualquer sentimento de religiosidade. A religião
é apenas produto do “eu” carente. Feuerbach
“explicou a religião como um desejo
de projeção egoísta e subjetivo. Analisando a religião empiricamente, Feuerbach
chegou à conclusão de que os deuses não foram nada além dos desejos projetados
e objetivisados. O homem, ele disse, era o começo, o meio e o fim da religião;
a teologia era antropologia.”[3]
A religião passou a ser um fenômeno puramente humano, sem qualquer
relacionamento com alguém de fora da esfera humana. Deus ficou de fora da
religião no pensamento de Feuerbach. Quando mais se estuda a religião, mais se
conhece o homem, no pensamento de Feuerbach. Por isso que, na teologia
antropológica, a noção da interferência providencial de Deus não tem lugar.
O pensamento de Nietzsche levou à mesma conclusão. Para esse
pessimista, a fé era a projeção de um ideal do homem, não a resposta humana à
intervenção divina no mundo que ele criou. Deus estava morto na sua filosofia e
a religião não tinha nada a ver com a sua ação no mundo dos homens.
Sigmund Freud não conseguiu fugir da subjetividade da religião. Para
ele, a religião era uma “projeção do homem cercado e ameaçado pelos poderes da
natureza. Sem defesa contra essas ameaças, o homem procurou por lugares de
refúgio.”[4] A idéia da
providência divina surgiu da imaginação dos homens. A providência a que ele se
refere é apenas uma projeção daquilo que nós fazemos em favor de nós próprios.
Por essa razão, ele disse em uma de suas obras:
“Nós dizemos a nós mesmos que é muito
bonito, de fato, que haja um Deus criador do mundo, uma doce providência, uma
ordem moral, e uma vida por vir — mas é digno de nota que tudo isto seja
exatamente como deveríamos desejar para nós próprios.” [5]
Isto é uma projeção de nossos sentimentos, uma ilusão simplesmente,
não o resultado da realidade de um Deus presente entre nós, o seu mundo criado.
Com esse sentimento interior projetado, os seres humanos vivem e dele se
alimentam. Essa é a providência para suas vidas.
Por causa da carência do “eu” mais tarde, com Karl Marx e o
desenvolvimento do materialismo científico do comunismo, a religião veio a ser
concebida como o “ópio do povo”, para entorpecê-lo diante dos problemas
emergentes. A religião seria apenas um escape para a miséria e os males
sociais. Marx foi de encontro à idéia da religião porque ele a virou de cabeça
para baixo. Ele disse “Não” à religião cristã. Todavia, a idéia de religião não
desapareceu, mas continuou sendo o anestésico para as dores causadas pelos
sofrimentos pessoais e sociais do mundo. Ela permaneceu apenas como expressão
da subjetividade humana.
Ora, se a religião é apenas uma projeção dos nossos sentimentos
interiores, o que ela tem a ver com a intervenção da providência divina? Nada.
A religião depende das nossas sensações interiores e não da resposta ao impacto
da revelação divina.
3) A Erupção das Duas Guerras Mundiais
Porque a princípio alguns cristãos começaram a esposar os postulados
do naturalismo científico, a doutrina da providência não sofreu um ataque muito
violento. Por algum tempo a doutrina da providência ainda sobreviveu dentro do
cristianismo histórico. O evolucionismo começou a reinar no século XIX, mas a
doutrina da providência divina foi preservada quase que intacta até uma certa
altura, quando se deu o irrompimento das duas guerras mundiais, e o otimismo em
que o mundo vivia com respeito à bondade do homem, caiu por terra e, com isso,
apareceu a dúvida de que Deus continuava a agir providencialmente com bondade
em nosso mundo.
Com o desapontamento sobre a bondade humana após a deflagração dos
dois grandes conflitos mundiais, muitas pessoas começaram a pender para o
agnosticismo que é o resultado do deísmo. Começou-se a duvidar do envolvimento
de Deus com este mundo e de sua participação na história dele. “Em todo lugar
dúvidas profundas foram levantadas como respeito à realidade de Deus; os homens
não somente negaram a Providência sobre todas
as coisas, mas ridicularizaram a idéia por apontarem para a realidade ao
redor de nós.”[6] Com a
derrocada da belle epoque, surgiram
com toda força os movimentos emergentes do existencialismo. Foi o renascimento
do subjetivismo, mas com características de maior incredulidade. No cenário
político houve o surgimento do comunismo que negou a idéia de religião e a
considerou como sendo apenas ópio do povo. Desacreditou-se em Deus em muitos
círculos do mundo pensante, à medida que os males sociais se tornaram cada vez
maiores.
Nunca houve tempo de tantas tempestades filosóficas em que a
confissão da igreja protestante sobre a providência divina tenha sofrido tão
sério golpe! Com o surgimento das filosofias e com o aumento dos problemas
sociais no mundo a pregação sobre a providência divina tornou-se inviável porque
as pessoas começaram a duvidar de que havia um Deus preocupado com este grande
e sofrido universo. Em alguns círculos cristãos, a ortodoxia do cristianismo
entrou em crise e não foi suficientemente forte para reverter a situação. A
igreja na Europa estava morrendo à míngua, pois possuía os postulados do
liberalismo e, com a perda da fé na bondade humana, ficou sem o suporte que a belle epoque lhe dava. Berkouwer, um
contemporâneo desse tempo de crise disse que “a confissão da providência de
Deus tem se tornado, agora mais do que nunca, numa pedra-de-tropeço.”[7] Diante das
duas grandes catástrofes mundiais, o cristianismo histórico em algumas terras
ficou sem muita coisa que dizer a respeito da providência divina porque, ao
invés de aterem-se aos ensinamentos da Escritura sobre como Deus governa a
história, ficaram apenas com a experiência amarga dos acontecimentos da época,
sem terem explicações que dar aos opositores incrédulos, os adversários do
cristianismo.
O cristianismo liberal, que ocupava a maior parte das igrejas
européia e americana, falhou em responder às questões levantadas, porque
abandonaram a crença na inspiração das Escrituras, e se esqueceram de buscar
nela a resposta para os atos providenciais de Deus na história contemporânea.
Muitos cristãos sinceros acabaram por ficar na mesma situação do autor do Salmo
73 que, observando a prosperidade dos ímpios e o sofrimento de justos, ficou
perplexo e duvidou da bondade providencial de Deus. Como o salmista, muitos
acabaram entrando em colapso espiritual e houve crise com respeito à soberania
de Deus. Eles falharam no entendimento do relacionamento dos juízos parciais de
Deus sobre os seres humanos, por causa dos seus pecados. Eles pensaram que Deus
tinha a obrigação de impedir qualquer manifestação de maldade na vida dos
homens. Olvidaram-se de que a catástrofe que ameaça a vida no mundo
freqüentemente é uma imposição penal (embora apenas parcial) de Deus sobre o
mundo pecador. Eles pensaram humanisticamente sobre a história. Esqueceram-se
de que Deus conduz a história que de antemão escreveu. Perderam o sentido da
verticalidade da relação Deus-homem.
Quando isto acontece, os seres humanos começam a viver sem propósito
na vida. Foi nessa hora que a crise existencial se avolumou e tudo acabou sendo
“vaidade de vaidades”, à semelhança da cosmovisão do antigo Pregador. O
fatalismo, então, passou a ser a crença de muitos, não a crença na providência
divina. Berkouwer diz que esse fenômeno passou a ser um resultado da
secularização. “Deus é estranho ao homem; e o homem se torna num estranho no
mundo de Deus”.[8]
As duas grandes guerras foram um balde de água fria naqueles que
criam num Deus providente e cheio de cuidados pelo mundo. As atrocidades
cometidas nas guerras acabaram com as esperanças humanizantes da teologia
liberal que já havia dominado as igrejas da Europa e da América do Norte, as
duas outrora grandes e pujantes fontes de obra missionária. A ortodoxia
protestante foi ficando cada vez mais fraca e, dentro do cristianismo mundial,
perdeu seu interesse pelo estudo da providência divina porque, para muitos
cristãos que não haviam sido devidamente educados na doutrina, a providência
significava unicamente Deus agindo benévola e agradavelmente na vida dos seres
humanos de modo que eles são sempre protegidos e guardados de todo mal. Essa
visão de providência desapareceu do conceito de muitos cristãos. Em tempos
quando Deus exerce seus juízos parciais sobre os homens, fazendo com que
desgraças e infortúnios apareçam na vida deles, as mesmas perguntas acontecem: “Por
que? Até quando? Onde está o Deus dos cristãos?” O grande interesse no estudo
da providência sempre está ligado às benesses que ele envia para o mundo.
Quando essas benesses desaparecem, pelo menos temporariamente, o interesse pelo
estudo da providência freqüentemente diminui na teologia da igreja.
Fonte: O Ser de Deus e as suas obras, A Providência - Dr. Heber Carlos de Campos
- Editora Cultura Cristã, 2001
[1] G. C. Berkouwer, The Providence of God, (Eerdmans, 1952),
pp. 9-32.
[2] G. C. Berkouwer, The
Providence of God (Grand Rapids: Eerdmans, 1952), 13.
[3] Berkouwer, The Providence of God, 22.
[4] Ibid., 22.
[5] Sigmund Freud, Die Zukunft einer Illusion, 1928, 53 (Berkouwer, The
Providence of God, 22).
[6] Berkouwer, The Providence of God, 14.
[7] Berkouwer, The Providence of God, 15.
[8] Berkouwer, The Providence of God, 19.
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