Por John Piper
Como Passei a Buscar o Prazer Cristão
"E"? Como arroz e feijão ? Às vezes você glorifica Deus e às vezes se alegra nele? Às vezes ele recebe a glória , e às vezes você recebe a alegria ? "E" é uma palavra muito ambígua ! Que relação essas duas coisas têm entre Si ?
É evidente que os antigos teólogos não achavam que estavam falando de duas coisas . Eles disseram "fim supremo e principal ", não "principais finalidades ". Glorificar a Deus e gozá-lo eram uma só finalidade em sua mente , não duas. Como pode ser isso ?
É disso que trata esse livro .
A preocupação principal desse livro é que em tudo na vida Deus seja glorificado da maneira que ele indicou. Com esse objetivo , esse livro pretende convencê-lo de que : O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus ao gozá-lo plena e eternamente .
Descobri que o que havia de bom nas minhas ações morais era diminuído à medida que eu era motivado pelo desejo do meu próprio prazer . Naquela época , comprar sorvete na cantina dos estudantes apenas por prazer não me incomodava, porque as conseqüências morais dessa ação pareciam ser tão insignificantes . Mas ser motivado pelo anseio por felicidade ou prazer quando me apresentava como voluntário para o trabalho cristão ou quando ia ao culto — isso me parecia egoísta, utilitário , mercenário .
Uma das áreas de maior frustração era a de adoração e louvor . Minha noção vaga de que , quanto mais elevada fosse a atividade , menos deveria haver de interesse próprio nela, fazia-me pensar no louvor quase exclusivamente em termos de dever . E isso tira a essência da coisa .
1) Durante o meu primeiro trimestre no seminário fui apresentado ao argumento em favor do prazer cristão e a um dos seus grandes defensores , Blaise Pascal . Ele escreveu:
Todas as pessoas buscam a felicidade . Não há exceção para isso . Sejam quais forem os meios diferentes que empreguem, todos objetivam esse alvo . A razão de alguns irem à guerra , e de outros a evitarem, é o mesmo desejo em ambos , visto de perspectivas diferentes . A vontade nunca dará o último passo em outra direção . Esse é o motivo de cada ação de todo ser humano , mesmo dos que se enforcam.1
Essa declaração combinou tão bem com meus próprios anseios profundos e com tudo o que sempre tinha visto nos outros , que a aceitei e jamais encontrei alguma razão para duvidar dela. O que chamou especialmente minha atenção foi que Pascal não estava fazendo algum julgamento moral desse fato . No que lhe dizia respeito , buscar a própria felicidade não era pecado ; é um traço comum da natureza humana . É uma lei do coração humano , assim como a gravidade é uma lei da natureza .
2) No tempo da faculdade , eu aprendera a apreciar muito a obra de C. S. Lewis. Contudo , apenas bem mais tarde comprei o sermão intitulado "Peso de glória ". A primeira página desse sermão é uma das mais influentes páginas literárias que jamais li. Diz assim :
Se você perguntasse a vinte homens íntegros dos nossos dias qual acreditam ser a maior das virtudes , dezenove responderiam: "abnegação ". Mas se perguntasse a qualquer um dos grandes cristãos do passado ele diria: "amor ". Você percebe o que aconteceu? O termo positivo foi substituído por um negativo , e isso tem importância maior do que apenas o aspecto filológico. O ideal de abnegação traz consigo , basicamente, a noção não de procurar o beneficio dos outros , mas de prescindirmos nós desse benefício , como se o importante fosse não a felicidade alheia , mas a nossa abstenção . Não me parece ser essa a virtude cristã do amor . O Novo Testamento tem muito a declarar sobre renúncia , mas não da renúncia como um fim em si . Ele diz-nos que devemos negar a nós mesmos e tomar a nossa cruz para poder seguir a Cristo . E quase todas as descrições da recompensa que se seguirá a essa renúncia contêm um apelo ao desejo natural de felicidade .
Se hoje a noção de que é errado desejar a nossa felicidade e esperar ansiosamente gozá-la esconde-se na maioria das mentes , afirmo que ela surgiu em Kant ou nos estóicos, mas não na fé cristã. Na realidade , se considerarmos as promessas pouco modestas de galardão e a espantosa natureza das recompensas prometidas nos evangelhos , diríamos que nosso Senhor considera nossos desejos não demasiadamente grandes , mas demasiadamente pequenos . Somos criaturas divididas, correndo atrás de álcool , sexo e ambições , desprezando a alegria infinita que se nos oferece, como uma criança ignorante que prefere continuar fazendo bolinhos de areia numa favela , porque não consegue imaginar o que significa um convite para passar as férias na praia . Contentamo-nos com muito pouco .2
Estava tudo ali às claras , e para minha mente era totalmente convincente : não o errado desejar o próprio bem . De fato , o grande problema das pessoas é que é muito fácil satisfazê-las. Não buscam o prazer nem de longe com a determinação e a paixão com que deveriam. Assim , contentam-se com bolos de barro , e não com delícias infinitas.
3) A terceira conclusão estava ali no sermão de Lewis, mas Pascal a deixou mais explícita . Ele continua e diz:
O homem já teve a verdadeira felicidade , da qual agora resta nele apenas o sinal e o espaço vazio , que ele tenta em vão preencher com as coisas ao seu redor , procurando em coisas ausentes a ajuda que não obtém nas coisas presentes . Essas, porém , são todas incapazes , porque o abismo infinito pode ser preenchido somente por um objeto infinito e imutável , ou seja, apenas pelo próprio Deus .3
Olhando para trás agora , isso parece tão evidentemente óbvio , que não sei como pude deixar de vê-lo antes . Por todos aqueles anos eu tentara reprimir meu tremendo anseio por felicidade para poder louvar a Deus honestamente a partir de algum motivo mais "elevado ", menos egoísta. Agora começara a fazer sentido que esse suspiro persistente e inegável por felicidade não devia ser reprimido, mas satisfeito — em Deus ! A convicção crescente de que o louvor devia ser motivado apenas por essa felicidade que encontramos em Deus pareceu-me cada vez menos estranha .
4) A próxima percepção veio novamente de C. S. Lewis, só que desta vez das suas Reflections on the Psalms. O capítulo nove desse livro tem o modesto título : "Uma palavra sobre o louvor ". Em minha experiência , essa tem sido a palavra sobre louvor — a melhor palavra sobre a natureza do louvor que jamais li. Lewis diz que , quando estava começando a crer em Deus , um grande empecilho foram as várias exigências , dispersas pelos salmos , de que deveria louvar a Deus . Ele não via o sentido disso tudo ; além disso, parecia que isso mostrava Deus ansiando "por nossa adoração como uma mulher vaidosa por elogios ". Ele passa a mostrar porque estava errado:
O fato mais óbvio sobre o louvor , porém — seja de Deus , seja de qualquer coisa — estranhamente me escapara. Eu o considerava um tipo de elogio , aprovação , ou honra . Jamais eu percebera que toda alegria transborda espontaneamente cm louvor . [...] O mundo ressoa do louvor : apaixonados louvam suas amadas; leitores , seu poeta favorito ; caminhantes , a paisagem ; jogadores , seu jogo predileto ...
Creio que gostamos de louvar o que nos alegra porque o louvor não apenas expressa mas completa a alegria ; ele é sua consumação pretendida.4
Temos um nome para os que tentam louvar quando não têm prazer no objeto . Nós os chamamos de hipócritas . Esse fato — que o louvor significa prazer completo e que a finalidade primordial do ser humano é beber intensamente desse prazer — talvez tenha sido a descoberta mais libertadora que jamais fiz.
5) Em seguida , voltei aos salmos em proveito próprio , e encontrei a linguagem do prazer em todo lugar . A busca do prazer nem mesmo era opcional , mas compulsória : "Agrada-te do Senhor , e ele satisfará os desejos do teu coração " (Sl 37.4).
O salmista tentou fazer exatamente isso : "Como suspira a corça pelas correntes das águas , assim , por ti, ó Deus , suspira a minha alma . A minha alma tem sede de Deus , do Deus vivo " (Sl42.1, 2). "A minha alma tem sede de ti; meu corpo te almeja, como terra árida , exausta , sem água " (Sl 63.1). O tema da sede tem sua contrapartida de matar a sede quando o salmista diz que as pessoas "fartam-se da abundância da tua casa , e na torrente das tuas delícias lhes dás de beber " (Sl 36.8).
Descobri que a bondade de Deus , que é a própria base da adoração , não é algo que você saúda num gesto de reverência desinteressado . Não , devemos nos regozijar nela: "Oh ! Provai e vede que o Senhor é bom " (Sl 34.8). "Quão doces são as tuas palavras ao meu paladar ! Mais que o mel à minha boca " (Sl 119.103).
Essa é a breve história de como passei a ser um cristão que busca o prazer . Tenho meditado nessas coisas por cerca vinte e oito anos , e disso emergiu uma filosofia que toca praticamente todas as áreas da minha vida . Tenho a convicção de que ela é bíblica, de que preenche os anseios mais profundos do meu coração e de que honra o Deus e Pai do nosso senhor Jesus Cristo . Escrevi esse livro para recomendar essas coisas a todos os que quiserem escutar .
Muitas objeções se levantam na mente das pessoas quando me ouvem falando desse jeito . Espero que o livro responda aos questionamentos mais sérios . Mas talvez eu possa desarmar de antemão um pouco da resistência , fazendo alguns comentários esclarecedores .
A razão por que chego a essa conclusão é que não estou agindo aqui como um hedonista filosófico, mas como um teólogo bíblico e pastor (imprecisa seguir os mandamentos divinos :
De "amar a misericórdia " (não apenas exercê-la, Mq 6.8);
De "exercer misericórdia com alegria " (Rm 12.8);
De sofrer "com alegria o espólio dos bens ", em benefício dos prisioneiros (Hb 10.34);
De "dar com alegria " (2Co 9.7);
De tornar nossa alegria a alegria dos outros (2Co 2.3);
De pastorear o rebanho de Deus de boa vontade , "desejoso de servir " (1Pe 5.2, nvi); e
De atender às necessidades espirituais das pessoas "com alegria " (Hb 13.17).
Piper talvez consiga alterar a primeira resposta no Catecismo de Westminster — de modo que glorificar e gozar a Deus se torna glorificar ao gozar a divindade — para servir a seus propósitos hedonistas , mas é um pouco mais difícil alterar as primeiras linhas do Catecismo de Heidelberg: que eu , de corpo e alma , na vida como na morte , não pertenço a mim mesmo , mas ao meu fiel Salvador Jesus Cristo .7
O que é marcante no começo do Catecismo de Heidelberg não é que eu não posso alterá-lo com propósitos hedonistas , mas que eu não preciso fazê-lo. Já se coloca todo o catecismo sob o anseio humano de "consolo ". Primeira pergunta : "Qual é sua única fonte de consolo na vida e na morte ?". A questão premente para os críticos do prazer cristão é: Por que os homens que elaboraram esse catecismo de quatrocentos anos estruturam todas as 129 perguntas de modo tal que elas são uma exposição da pergunta : "Qual é minha única fonte de consolo ?".
A resposta a essa segunda pergunta do catecismo é: "Três coisas : primeira , a enormidade do meu pecado e minha miséria . Segunda , como sou redimido de todos os meus pecados e miséria . Terceira , como devo ser grato a Deus por tamanha redenção ". Em seguida , o restante do catecismo é dividido em três seções , para tratar dessas três coisas : "Primeira parte : a desgraça humana " (perguntas 3-11); "Segunda parte : a redenção humana " (perguntas 12-85); e "Terceira parte : a gratidão " (perguntas 86-129). O sentido disso é que todo o Catecismo de Heidelberg foi escrito para responder à pergunta : O que preciso saber para viver feliz ?
Fico surpreso por alguém pensar que o prazer cristão precisa "alterar as primeiras linhas do Catecismo de Heidelberg". O fato é que todo o catecismo foi estruturado da maneira como o prazer cristão o faria. Por isso o prazer cristão não distorce os catecismos reformados históricos . Tanto o Catecismo de Westminster como o de Heidelberg começam com a preocupação com o prazer do ser humano em Deus , ou sua busca por "viver e morrer feliz ". Não tenho qualquer desejo de inventar novidades doutrinárias. Estou contente por ter sido o Catecismo de Heidelberg escrito quatrocentos anos atrás .
Definindo o que é prazer cristão
O prazer cristão é uma filosofia de vida baseada nas cinco convicções seguintes :
1) O anseio por ser feliz é uma experiência humana universal , e é algo bom , não pecaminoso ;
A felicidade mais profunda e permanente encontra-se apenas em Deus . Não com origem em Deus , mas em Deus ; A felicidade que encontramos em Deus atinge sua consumação quando compartilhada com outros nos multiformes caminhos do amor ; Na mesma medida em que tentamos abandonar a busca do prazer próprio , deixamos de honrar a Deus e de amar as pessoas . Ou , para usar termos afirmativos : a busca do prazer é parte necessária de toda adoração e virtude . Ou seja, O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus ao gozá-lo plena e eternamente .
A raiz da questão
1Blaise Pascal , Pascais Pensées. Nova York, E. P. Dutton, 1958, p. 113, pensamento nº 425
2C. S. Lewis, Peso de glória . São Paulo, Vida Nova , 1993, p. 11-12.
3Pascais Pensées, p. 113.
4C. S. Lewis, Reflections on the Psalms. Nova York , Harcourt, Brace and World, 1958, p. 94, 95
5Uma das críticas mais extensas e sérias ao prazer cristão publicada depois de Desiring God é de Richard Mouw, The God who commands (Notre Dame, Notre Dame Press, 1990). A citação foi tirada da p. 33 (ênfase acrescentada).
6Entre outros textos que revelam o dever da alegria em Deus ordenado por Deus estão Dt 28.47; ICr 16.31,33; Ne 8.10; Sl 32.11; 33.1; 35.9; 40.8, 16; 42.1, 2; 63.1, 11; 64.10 95.1; 97.1, 12; 98.4; 104.34; 105.3; Is 41.16; Jl 2.23; Zc 2.10; 10.7; Fp 3.1; 4.4. Entre os textos que mencionam o mandamento divino de alegrar-se amando os outros estão 2Co 9.7; cf. At 20.35; Hb 10.34; 13.17; lPe 5.2. 7Richard Mouw, The God who commands, p. 36.
Fonte: Teologia da alegria : A plenitude da satisfação em Deus / John Piper – São Paulo: Shedd, 2001.
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