sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A REALIDADE DA PROVIDÊNCIA


Não há como negar a existência da obra providencial de Deus, porque não há coisas que venham a acontecer por mero acaso na vida deste mundo e, muito menos, na existência individual das pessoas. Aqueles que negam as obras providenciais de Deus acabam caindo num fatalismo ou na idéia do acaso. O fato é que nenhum ser humano pensa que é absolutamente independente dos eventos que acontecem neste mundo. Os seres humanos não possuem controle sobre os eventos do universo e sobre a vida pessoal deles.

O cristão, como lhe deve ser próprio, crê num Deus transcendente e, ao mesmo tempo, imanente, que está envolvido com a sua criação “sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1.3) e, sabedor de que ninguém escapa do controle de Deus, como Paulo, ele também crê que “dele e por meio dele e para ele são todas as cousas” (Rm 11.36).

A providência divina não deve ser vista apenas nos atos agradáveis que acontecem na vida dos homens, como as provisões nas horas de necessidade, mas também nos atos de Deus que implicam em sofrimentos e aflições dos seres humanos (o que inclui os seus pecados) que acabam concorrendo, de um lado, para o bem dos que amam a Deus e, de outro lado, para o mal dos que não o amam.

Quando encorajado por sua mulher a amaldiçoar Deus e morrer, por causa dos seus sofrimentos, o crente Jó entendeu que os males que ele sofria provinham das mãos do Todo-Poderoso. Por essa razão, ele replica à sua esposa: “Falas como qualquer doida; temos recebido o bem de Deus, e não receberíamos também o mal?” (Jó 2.10). A mesma perspectiva providencial teve o profeta Oséias, quando sentiu a mão pesada de Deus sobre o seu povo. Então, ele conclama o povo diante da dor: “Vinde, tornemos para o Senhor, porque ele nos despedaçou e nos sarará; fez a ferida, e a ligará” (Os 6.1).

Em sã consciência, nenhum cristão ousará negar a realidade da providência divina na vida de todos os homens. Todavia, somente os cristãos genuínos a reconhecem e por ela dão graças!

O Desprezo à Doutrina da Providência


Não obstante a realidade da providência divina, tem havido um certo desprezo à doutrina da providência nas últimas décadas no mundo chamado cristão. Ela tem sido esquecida ou negligenciada nos ensinos de seminários e das igrejas atualmente, no mínimo, por razões teológicas, mas há razões filosóficas e cientificistas por detrás dessa despreocupação por ela.

 Berkouwer escreveu o primeiro capítulo de seu livro sobre a providência falando da crise da doutrina da providência no século XX.[1] Quase não há nada escrito sobre a providência de Deus nas últimas décadas no cristianismo histórico, se levarmos em conta a grande importância dessa doutrina. Na língua portuguesa praticamente inexiste qualquer publicação substanciosa a respeito. No entanto, a igreja vai crescendo em tamanho, mas sem o conhecimento da obra providencial de Deus e, por causa dessa lacuna, negativamente falando, vai crescendo também na ignorância desse assunto tão basilar à saúde de sua vida espiritual.

Precisamos devolver à igreja contemporânea o que ela perdeu no século XX, e que foi crido de uma maneira muito vívida desde o período da Reforma do século XVI. No período das Confissões de fé protestantes houve uma grande ênfase na doutrina da providência, terminando a ênfase no período do escolasticismo protestante. Com muita força as confissões falaram da obra de preservação e governo de Deus sobre todo o universo. Depois, pouco a pouco, o interesse nela foi caindo.

Há algumas razões que, historicamente, levaram a igreja cristã, de um modo geral, a possuir uma certa despreocupação pela doutrina da providência divina.

 

1) O Desenvolvimento do Naturalismo Científico no Século XIX


O século XIX foi marcado pelo desenvolvimento da obra missionária e, portanto, da grande expansão da igreja em todos os continentes. Esse é apenas um lado da história. Ao mesmo tempo em que houve um crescimento numérico, houve também um decréscimo na ênfase doutrinária da igreja, que havia sido típico de períodos anteriores. Com esse enfraquecimento, as brechas para as influências externas na vida da igreja começaram a se tornar maiores. Quanto mais aumentava o calcanhar de Aquiles da Igreja, mais atacável ela veio se tornar. Os ataques do liberalismo teológico emergente começaram a chacoalhar os alicerces da teologia da ortodoxia. Várias doutrinas básicas do cristianismo foram atacadas violentamente durante essa época.

Todavia, mesmo em tempos de crise da igreja, quando outras doutrinas foram objeto de grande crítica (como a doutrina do nascimento virginal, ressurreição e ascensão, que padeceram diante do ataque da teologia liberal no séculos XIX e XX), a princípio a doutrina da providência não sofreu tanto. Ela foi usada por cristãos que começaram a assimilar o pensamento de um evolucionismo cientificista. Por isso, Berkouwer diz que “a doutrina da providência foi freqüentemente usada como um outro modo de afirmar a crença na evolução progressiva do homem.”[2]

Isso quer dizer que, pelo menos a princípio, o estudo da providência não sofreu grande abalo nos primeiros tempos do darwinismo. Mesmo embora o estudo da providência não tenha sofrido forte abalo naquela época, os fundamentos do cristianismo foram alterados pelo ensino do evolucionismo. Os efeitos apareceriam mais tarde na fraqueza da teologia cristã minada por um cientificismo humanista.

O estudo da ciência começou dispensando a idéia do Deus presente neste mundo por enfatizar o naturalismo. Todos os fenômenos acontecidos neste mundo passaram a possuir uma causa natural, dentro dele próprio, nunca tendo uma causalidade fora de si mesmo, isto é, na obra providencial de Deus. A natureza começou a ser estudada como auto-causada. Ao invés de atribuir os fenômenos da natureza a um Princípio causal último que é Deus, os estudiosos começaram a falar da Mãe-Natureza como sendo a explicação causal última das coisas. O nosso mundo tornou-se independente, autônomo e o estudo dos fenômenos físicos ficou trancafiado nas causas naturais.

O aparecimento do estudo das origens das espécies foi apoiado pelo desenvolvimento do deísmo. O deísmo criou o pano-de-fundo teológico que acobertou o desenvolvimento do evolucionismo. Deus estava fora deste mundo, segundo o deísmo, sem possuir qualquer envolvimento com ele e, portanto, todas as explicações sobre os fenômenos acontecidos no universo tinham que ter sua origem na própria natureza. Não sobrou espaço para Deus por causa do naturalismo científico. Portanto, ficou sem sentido o estudo da operação providencial de Deus.

 

2) O Aparecimento da Subjetividade da Religião


Especialmente depois de Friedrich Schleiermacher, tornou-se lugar comum falar-se na religião como alguma coisa não além da subjetividade humana. Toda a manifestação religiosa não passava de uma erupção de sentimentos vindos do coração do homem. Obviamente, essa manifestação religiosa não era o desenvolvimento do semen religionis ensinado por João Calvino em suas Institutas da Religião Cristã (porque o estudo da teologia de Calvino foi, na prática, deixado de lado), mas apenas um sentimento da própria subjetividade humana, sem que esta fosse despertada pela revelação divina que está fora de nós e causa impacto nos seres humanos.

Embora a religião seja um fenômeno universal entre os humanos — e isto é reconhecido por todos porque a experiência não deixa dúvida — passou a crer-se que ela era apenas uma expressão de nossas necessidades egoístas interiores. Nada mais. Essa corrente filosófica desenvolveu-se com Ludwig Feuerbach, Neitzsche, Marx e Freud.

A idéia da divindade entre os homens nasce em sua subjetividade sem que nunca seja impactada por alguma coisa que proceda de fora de deles. Não há revelação divina que provoque qualquer sentimento de religiosidade. A religião é apenas produto do “eu” carente. Feuerbach

“explicou a religião como um desejo de projeção egoísta e subjetivo. Analisando a religião empiricamente, Feuerbach chegou à conclusão de que os deuses não foram nada além dos desejos projetados e objetivisados. O homem, ele disse, era o começo, o meio e o fim da religião; a teologia era antropologia.”[3]

A religião passou a ser um fenômeno puramente humano, sem qualquer relacionamento com alguém de fora da esfera humana. Deus ficou de fora da religião no pensamento de Feuerbach. Quando mais se estuda a religião, mais se conhece o homem, no pensamento de Feuerbach. Por isso que, na teologia antropológica, a noção da interferência providencial de Deus não tem lugar.

O pensamento de Nietzsche levou à mesma conclusão. Para esse pessimista, a fé era a projeção de um ideal do homem, não a resposta humana à intervenção divina no mundo que ele criou. Deus estava morto na sua filosofia e a religião não tinha nada a ver com a sua ação no mundo dos homens.

Sigmund Freud não conseguiu fugir da subjetividade da religião. Para ele, a religião era uma “projeção do homem cercado e ameaçado pelos poderes da natureza. Sem defesa contra essas ameaças, o homem procurou por lugares de refúgio.”[4] A idéia da providência divina surgiu da imaginação dos homens. A providência a que ele se refere é apenas uma projeção daquilo que nós fazemos em favor de nós próprios. Por essa razão, ele disse em uma de suas obras:

“Nós dizemos a nós mesmos que é muito bonito, de fato, que haja um Deus criador do mundo, uma doce providência, uma ordem moral, e uma vida por vir — mas é digno de nota que tudo isto seja exatamente como deveríamos desejar para nós próprios.” [5]

Isto é uma projeção de nossos sentimentos, uma ilusão simplesmente, não o resultado da realidade de um Deus presente entre nós, o seu mundo criado. Com esse sentimento interior projetado, os seres humanos vivem e dele se alimentam. Essa é a providência para suas vidas.

Por causa da carência do “eu” mais tarde, com Karl Marx e o desenvolvimento do materialismo científico do comunismo, a religião veio a ser concebida como o “ópio do povo”, para entorpecê-lo diante dos problemas emergentes. A religião seria apenas um escape para a miséria e os males sociais. Marx foi de encontro à idéia da religião porque ele a virou de cabeça para baixo. Ele disse “Não” à religião cristã. Todavia, a idéia de religião não desapareceu, mas continuou sendo o anestésico para as dores causadas pelos sofrimentos pessoais e sociais do mundo. Ela permaneceu apenas como expressão da subjetividade humana.

Ora, se a religião é apenas uma projeção dos nossos sentimentos interiores, o que ela tem a ver com a intervenção da providência divina? Nada. A religião depende das nossas sensações interiores e não da resposta ao impacto da revelação divina.

 

3) A Erupção das Duas Guerras Mundiais


Porque a princípio alguns cristãos começaram a esposar os postulados do naturalismo científico, a doutrina da providência não sofreu um ataque muito violento. Por algum tempo a doutrina da providência ainda sobreviveu dentro do cristianismo histórico. O evolucionismo começou a reinar no século XIX, mas a doutrina da providência divina foi preservada quase que intacta até uma certa altura, quando se deu o irrompimento das duas guerras mundiais, e o otimismo em que o mundo vivia com respeito à bondade do homem, caiu por terra e, com isso, apareceu a dúvida de que Deus continuava a agir providencialmente com bondade em nosso mundo.

Com o desapontamento sobre a bondade humana após a deflagração dos dois grandes conflitos mundiais, muitas pessoas começaram a pender para o agnosticismo que é o resultado do deísmo. Começou-se a duvidar do envolvimento de Deus com este mundo e de sua participação na história dele. “Em todo lugar dúvidas profundas foram levantadas como respeito à realidade de Deus; os homens não somente negaram a Providência sobre todas as coisas, mas ridicularizaram a idéia por apontarem para a realidade ao redor de nós.”[6] Com a derrocada da belle epoque, surgiram com toda força os movimentos emergentes do existencialismo. Foi o renascimento do subjetivismo, mas com características de maior incredulidade. No cenário político houve o surgimento do comunismo que negou a idéia de religião e a considerou como sendo apenas ópio do povo. Desacreditou-se em Deus em muitos círculos do mundo pensante, à medida que os males sociais se tornaram cada vez maiores.

Nunca houve tempo de tantas tempestades filosóficas em que a confissão da igreja protestante sobre a providência divina tenha sofrido tão sério golpe! Com o surgimento das filosofias e com o aumento dos problemas sociais no mundo a pregação sobre a providência divina tornou-se inviável porque as pessoas começaram a duvidar de que havia um Deus preocupado com este grande e sofrido universo. Em alguns círculos cristãos, a ortodoxia do cristianismo entrou em crise e não foi suficientemente forte para reverter a situação. A igreja na Europa estava morrendo à míngua, pois possuía os postulados do liberalismo e, com a perda da fé na bondade humana, ficou sem o suporte que a belle epoque lhe dava. Berkouwer, um contemporâneo desse tempo de crise disse que “a confissão da providência de Deus tem se tornado, agora mais do que nunca, numa pedra-de-tropeço.”[7] Diante das duas grandes catástrofes mundiais, o cristianismo histórico em algumas terras ficou sem muita coisa que dizer a respeito da providência divina porque, ao invés de aterem-se aos ensinamentos da Escritura sobre como Deus governa a história, ficaram apenas com a experiência amarga dos acontecimentos da época, sem terem explicações que dar aos opositores incrédulos, os adversários do cristianismo.

O cristianismo liberal, que ocupava a maior parte das igrejas européia e americana, falhou em responder às questões levantadas, porque abandonaram a crença na inspiração das Escrituras, e se esqueceram de buscar nela a resposta para os atos providenciais de Deus na história contemporânea. Muitos cristãos sinceros acabaram por ficar na mesma situação do autor do Salmo 73 que, observando a prosperidade dos ímpios e o sofrimento de justos, ficou perplexo e duvidou da bondade providencial de Deus. Como o salmista, muitos acabaram entrando em colapso espiritual e houve crise com respeito à soberania de Deus. Eles falharam no entendimento do relacionamento dos juízos parciais de Deus sobre os seres humanos, por causa dos seus pecados. Eles pensaram que Deus tinha a obrigação de impedir qualquer manifestação de maldade na vida dos homens. Olvidaram-se de que a catástrofe que ameaça a vida no mundo freqüentemente é uma imposição penal (embora apenas parcial) de Deus sobre o mundo pecador. Eles pensaram humanisticamente sobre a história. Esqueceram-se de que Deus conduz a história que de antemão escreveu. Perderam o sentido da verticalidade da relação Deus-homem.

Quando isto acontece, os seres humanos começam a viver sem propósito na vida. Foi nessa hora que a crise existencial se avolumou e tudo acabou sendo “vaidade de vaidades”, à semelhança da cosmovisão do antigo Pregador. O fatalismo, então, passou a ser a crença de muitos, não a crença na providência divina. Berkouwer diz que esse fenômeno passou a ser um resultado da secularização. “Deus é estranho ao homem; e o homem se torna num estranho no mundo de Deus”.[8]

As duas grandes guerras foram um balde de água fria naqueles que criam num Deus providente e cheio de cuidados pelo mundo. As atrocidades cometidas nas guerras acabaram com as esperanças humanizantes da teologia liberal que já havia dominado as igrejas da Europa e da América do Norte, as duas outrora grandes e pujantes fontes de obra missionária. A ortodoxia protestante foi ficando cada vez mais fraca e, dentro do cristianismo mundial, perdeu seu interesse pelo estudo da providência divina porque, para muitos cristãos que não haviam sido devidamente educados na doutrina, a providência significava unicamente Deus agindo benévola e agradavelmente na vida dos seres humanos de modo que eles são sempre protegidos e guardados de todo mal. Essa visão de providência desapareceu do conceito de muitos cristãos. Em tempos quando Deus exerce seus juízos parciais sobre os homens, fazendo com que desgraças e infortúnios apareçam na vida deles, as mesmas perguntas acontecem: “Por que? Até quando? Onde está o Deus dos cristãos?” O grande interesse no estudo da providência sempre está ligado às benesses que ele envia para o mundo. Quando essas benesses desaparecem, pelo menos temporariamente, o interesse pelo estudo da providência freqüentemente diminui na teologia da igreja.

Fonte: O Ser de Deus e as suas obras, A Providência - Dr. Heber Carlos de Campos - Editora Cultura Cristã, 2001



[1] G. C. Berkouwer, The Providence of God, (Eerdmans, 1952), pp. 9-32.
[2] G. C. Berkouwer, The Providence of God (Grand Rapids: Eerdmans, 1952), 13.
[3] Berkouwer, The Providence of God, 22.
[4] Ibid., 22.
[5] Sigmund Freud, Die Zukunft einer Illusion, 1928, 53 (Berkouwer, The Providence of God, 22).
[6] Berkouwer, The Providence of God, 14.
[7] Berkouwer, The Providence of God, 15.
[8] Berkouwer, The Providence of God, 19.

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